'O Gosto do Sexo sem Rosto' quer ser livro gay, mas é moralista

Obra tem personagem mal construído e é coleção de ideias preconceituosas e até homofóbicas

Publicado em 06/09/2016
o gosto do sexo sem rosto
Obra fala mal da cultura e de espaços de confraternização gays: um desserviço

Por Marcio Claesen

As histórias de um bordel gay na Zona Norte de São Paulo reveladas por um diário de um garoto de programa real são uma premissa para lá de interessante do livro O Gosto do Sexo sem Rosto, de Marlon de Albuquerque, pela Thesaurus Editora. 

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No prefácio, o autor conta que frequentou diversos locais de sexo e orgias até encontrar Diego, um prostituto que lhe chamou atenção por ter uma história carregada de "suspense, dor e alegria" e que lhe mostrou anotações secretas, nas quais se baseiam parcialmente o livro.

Oriundo da Bahia, Diego, o protagonista, chega à capital paulista com 18 anos e, após uma passagem complicada pela casa do pai e da madrasta, descobre o prostíbulo masculino na Rua Voluntários da Pátria, em Santana, comandado por Eduardo. Descrito como um homossexual mais velho e sem atributos físicos, o homem sofre da síndrome do pequeno poder, destratando a todos sempre que pode.

Na rotina da casa está a melhor qualidade de "O Gosto". Não há glamour, lascívia ou diversões mil que alguns podem supor. O cotidiano dos rapazes oscila entre tedioso e massacrante - eles ficam acordados até a hora que Eduardo quiser e, mesmo depois que já foram dormir, são obrigados a se levantar no meio da madrugada caso algum cliente toque a campainha. Esconde-se o sono, força-se um sorriso no rosto e lá vão eles, um a um se apresentarem ao cliente em busca de sexo. Todos que não são escolhidos podem voltar para cama.

Cenário e propostas interessantes, entretanto, as derrapadas do autor se avolumam. Primeiro exemplo é o perfil improvável de Diego, o qual se mostra logo em seu primeiro programa. O garoto, que diz não gostar de homens e está ali somente por dinheiro, apaixona-se por Alexandre (?!). Um homem na faixa dos 40 anos, rico e com histórico de já ter se envolvido com outro rapaz da mesma casa. 

Erudição no bordel
No entanto, quanto mais esse romance se fortalece, a inverossimilhança chega a níveis vigorosos, principalmente quando o personagem se expressa. De família humilde e leitor voraz (sabe-se lá como ele tinha acesso a tantos livros na adolescência), Diego tem um sonho de ser piloto de avião e escreve poesias nas horas vagas. Mas não é nos seus escritos que suas palavras chamam atenção e, sim, em suas falas.

Seja com os outros prostitutos ou clientes, o rapaz revela um português de padrão Academia Brasileira de Letras. E dá-lhe pronomes oblíquos ("Fazer-lhe um afago") e termos pouco corriqueiros ("inefável", "lancinante", dentre muitos) em conversas corriqueiras, o que é difícil imaginar vindas da boca de um rapaz - não apenas por ser de origem simples ou vender o corpo, mas, sobretudo, por ter apenas 18 anos! 

O politicamente correto também tem vez aqui, mas cai no pedantismo e na contradição. Se por um lado Diego só se refere aos gays como homoafetivos, chegando ao disparate  e ao riso involuntário ao se declarar para uma mulher dizendo "Eu sou homoafetivo", por outro, o personagem trata travestis com o gênero masculino.

Ainda que o vocabulário do personagem não convença e só afaste o leitor da história, ele ainda não é o pior ponto baixo da obra. Albuquerque coloca na boca do rapaz lições de moral e conceitos definidos de vida típicos de livros de autoajuda. E são muitos. Muitos.

Saem da boca do garoto, em profusão, frases tais como "Mudar de pele é descortinar uma parte latente de nós", "A dúvida é uma coisa maravilhosa porque ela liberta nossa mente para a reflexão" e "Muitas vezes, a atração nos aproxima ainda mais de quem amamos". Ou ainda "A lealdade gera desgraças". Guiramães Rosa invejaria tal erudição. 

Julgamento de tudo e de todos
Mas o vocabulário empolado e as frases feitas tornam-se questões menores diante do maior problema da obra. Diego é um moralista sem tamanho, um personagem repleto de preconceitos, que julga o outro à sua medida o tempo todo. 

Em uma boate gay, o personagem pensa dos frequentadores: "Sabia que nunca seria como a maioria daquela gente, por certo, destituída de qualquer entendimento do que seria a vida de fato". Sobre um cliente: "Ficava impressionado como alguns clientes tinham uma resistência em receber algum tipo de carinho; o fim dessas pessoas é sempre a solidão". 

O rosário de estereótipos não conhece limites: "Se as baladas e as academias de musculação não tivessem tão lotadas de gays, teríamos muito mais antropólogos, filósofos e poetas, todos geniais". 

Sobre a Avenida Vieira de Carvalho, o coração gay da capital paulista: "Essa rua é o ponto de encontro dos gays analfabetos de São Paulo". E há muito mais, incluindo críticas às drag queens, paradas LGBT etc.

E tudo isso é dito não por vilania, mas é parido da candidez que caracteriza a verve de Diego, que sempre se vitimiza. Tal contradição só mostra o quanto a personagem é mal construído.

E como prova de que não se pode perdoar tantas ideias moralistas e até homofóbicas colecionadas ao longo do livro, o próprio autor afirma, no prefácio, que às histórias do real Diego juntou "punhados" de sua "ideologia". Sim, é pior do que se pode pensar! 

A todo o moralismo desenfreado e conjunto de frases feitas, tem-se um personagem que passa a história toda à espera do príncipe encantado, enfadonho e sem humor e que enche o amado de cobranças e choramingos em todos os encontros. É difícil imaginar a razão do outro voltar sempre a encontrá-lo. Até os momentos sexuais são pouco definidos, envoltos em uma teia romântica que domina o prostituto e que nada acrescentam à imaginação do leitor.

O dono do bordel pouco se concretiza como um antagonista, até porque Diego é o vilão de sua própria história e dos prometidos "suspense, dor e alegria" pelo autor, resta o desprezo do leitor por uma personagem com a qual não se gostaria nem de topar na rua. 

É triste constatar que a obra não contribui para uma visão sadia e positiva da homossexualidade. É o contrário: um punhado de páginas e tinta que só presta um grande desserviço.

O Gosto do Sexo sem Rosto, de Marlon de Albuquerque

 

O Gosto do Sexo sem Rosto

Marlon de Albuquerque
Thesaurus Editora
264 páginas
2013
R$ 39,90 no site da editora clicando aqui.


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